Apesar
de ter mais de 50 anos de existência, o Programa Nacional de
Alimentação Escolar (Pnae) só teve seu marco legal [Lei 11.947]
sancionado em 2009, graças à mobilização da sociedade civil, sobretudo por meio do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). A
disputa travada no Senado não foi fácil, devido à força de setores
privados das indústrias de alimentos, refeições coletivas e da bancada
ruralista que tentaram, mais uma vez, monopolizar o mercado
institucional da alimentação escolar.
Com
a lei algumas conquistas foram atingidas, como o reconhecimento da
alimentação como um direito humano e a obrigatoriedade de que no mínimo
30% dos recursos sejam destinados à compra de alimentos da agricultura
familiar
através de chamadas públicas de compra, com dispensa de licitação. O
PNAE garante a alimentação escolar dos alunos da educação básica em
escolas públicas e filantrópicas. Seu objetivo é atender as necessidades
nutricionais dos alunos para contribuir na aprendizagem e rendimento,
bem como promover hábitos alimentares saudáveis
Segundo
o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão
responsável pelo programa, a união repassa a cada dia letivo aos estados
e municípios R$ 0,30 a R$ 1,00 por aluno, de acordo com a etapa de
ensino. O investimento é calculado com base no censo escolar do ano
anterior ao atendimento. A sociedade acompanha e fiscaliza o programa
por meio de conselhos, do tribunal de contas e do ministério público,
dentre outras instituições. O orçamento de 2012 atingiu R$ 3,3 bilhões
para beneficiar cerca de 45 milhões de estudantes, sendo que
aproximadamente R$ 900 milhões devem ser direcionados para a compra
diretamente da agricultura familiar. A liberação do orçamento de 2013
está previsto para meados de janeiro, com estimativa de cerca de R$ 3,5
bilhões, o que significa R$ 1 bilhão para a agricultura familiar.
O cardápio a ser oferecido às escolas e os procedimentos para aquisição pública de alimentos também foram alterados pela lei. A
comida deve levar em consideração a produção local, a sazonalidade e
conter alimentos variados, frescos e que respeitem a cultura e os
hábitos alimentares saudáveis, como frutas três vezes por semana. Só
podem comercializar com o PNAE os agricultores que possuem a Declaração
de Aptidão ao Pronaf (DAP). Até julho deste ano, cada agricultor
poderia comercializar até R$ 9 mil por ano para o programa, mas a partir
da resolução nº 25, do FNDE, o limite passou para R$ 20 mil. A mudança é
fruto de um acordo com as mulheres do campo durante a Marcha das
Margaridas, segundo a Secretaria de Agricultura Familiar (SAF). As
prefeituras e secretarias estaduais são obrigadas a publicar os editais
de compras dos alimentos em jornais de circulação local ou na forma de
mural em lugar público.
De
acordo com o estudo realizado em 2010 pelo FNDE em parceria com o
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), no qual foram encaminhados
para as secretarias municipais e estaduais de educação 5.565
formulários, com resposta de 3,136 (14 estados), as regiões sul e sudeste lideram o ranking de compra da agricultura familiar.
No sul, mais de 50% dos municípios que responderam compram da
agricultura familiar, enquanto no norte apenas 15%. Os gestores da
educação apontam como desafio, por município: a falta de DAP das
organizações (557), dificuldade de logística (1.094), falta de
informação dos atores envolvidos (701), etc. As hortaliças, legumes e
verduras, seguidas das frutas, lideram as compras, e as gorduras e óleos
com os orgânicos e cereais são os menos comprados. Até o fechamento da
matéria o FNDE não disponibilizou dados mais atualizados.
Críticas e elogios da sociedade
Segundo
a presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
(Consea), Maria Emília Pacheco, o PNAE é extremamente relevante e
incorporou no seu novo marco legal elementos importantes, como o
conceito de alimentação adequada. Segundo ela, o fundamental é o
fortalecimento da agricultura familiar e camponesa para o processo da
transição agroecológica no país.
“Essa
política reforça o papel da agricultura familiar e reconhece que esses
agricultores e agricultoras produzem alimento de qualidade, além do fato
que eles têm direito a participar da política e vender a produção local
dispensando o processo licitatório pelas chamadas públicas. Por outro
lado, essa política inovadora traz também seus limites e dificuldades. Em
muitos locais do Brasil as prefeituras ainda não estão fazendo essas
chamadas públicas, e o processo licitatório acaba prevalecendo. Esse
problema é bastante complicado”, pontuou.
De
acordo com o FNDE, o órgão tem acompanhado a publicação das chamadas
públicas através do Portal da Rede Brasil Rural (RBR), ferramenta
implantada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) para
divulgá-las nos municípios e estados. O Projeto Nutre, também do MDA,
tem desenvolvido ações de capacitação com os agricultores familiares
interessados em vender para o Pnae para aproximá-los dos gestores e
facilitar o processo de aquisição. Há também a capacitação nos Centros
Colaboradores de Alimentação e Nutrição Escolar (CECANES), que têm
parceria com 7 universidades. No que diz respeito ao monitoramento da
gestão, segundo o FNDE, está em processo de implantação o Sistema de
Prestação de Contas online, que deve aprimorar o acompanhamento das
chamadas públicas.
O
Pnae tem servido de exemplo para outros países, como São Tomé e
Príncipe, na África, onde os produtos locais, como o leite de cabra,
estão sendo reincorporados ao sistema alimentar de modo a favorecer
gerações que foram acostumadas a consumir produtos importados. Mas, por outro lado, existem desafios.
De
acordo com Vanessa Schottz, do Fórum Brasileiro de Soberania e
Segurança Alimentar e Nutricional, a lei de alimentação escolar traz uma
estratégia de segurança alimentar e nutricional proporcionando a
oportunidade de aproximar os circuitos de produção e consumo. É uma
política que tem muitas potencialidades, tanto para a agricultura
familiar quanto para a agroecologia, complementou. O programa é também
uma oportunidade para identificar bloqueios na ponta do acesso dos
agricultores às políticas públicas, segundo ela.
“A
questão da comercialização é muito importante, mas não pode andar
sozinha. É necessário políticas voltadas para o financiamento da
produção, e que essa forma de financiamento seja adequada a um modelo de
produção sustentável com base na agroecologia. Um modelo de
financiamento acessível para as mulheres, os extrativistas, os
quilombolas, indígenas, da mesma forma que a assistência técnica vá
também em direção à agroecologia”, sugeriu.
Um
dos principais problemas identificados por especialistas do tema,
movimentos sociais e agricultores é a Declaração de Aptidão ao Pronaf
(DAP), que viabiliza a inserção dos agricultores familiares a qualquer
política pública.
O
entendimento é que da forma que está estruturada ela dificulta o acesso
às documentações para entrar no programa, sobretudo para mulheres,
quilombolas, indígenas, etc. Outra questão é como desvincular o acesso
de políticas de comercialização, como o PAA e o Pnae, do acesso ao
crédito. “É preciso pensar outro instrumento que identifique os
agricultores familiares, e que os habilite a acessar programas como
estes sem regras tão restritivas”, afirma Schottz.
A
DAP é obrigatória para acessar linhas de crédito, políticas públicas de
assistência técnica, seguro, incentivo à comercialização, dentre outros
mecanismos. É fornecida gratuitamente e emitida por órgãos credenciados
pelo MDA, e tem validade de seis anos. A Secretaria de Agricultura
Familiar (SAF/MDA) informou, por meio de sua assessoria, que está ciente
de todas as dificuldades envolvidas no processo de emissão de DAP, e
que ele vem sendo aperfeiçoado ao longo de tempo. Esse procedimento teve
início em meados de 2001 e, de acordo com o órgão, as alternativas para
emissão evoluíram do formulário em papel para emissão via internet.
“A
DAP é da família e não da pessoa. No desenho da base de dados foram
considerados todos os aspectos teóricos e analíticos que envolvem a
identificação e qualificação de pessoas e unidades familiares. Existem
normativas, como as Resoluções do Conselho Monetário Nacional e a
própria Lei da Agricultura Familiar – Lei 11.326 – que estabelecem os
parâmetros a serem considerados na qualificação dos agricultores
familiares. A SAF os considerou ao estruturar a base de dados de DAP. E
as políticas públicas dirigidas aos agricultores familiares implicam
quase sempre em subvenção econômicas e, portanto, passível de
responsabilização dos gestores, por parte dos órgãos de controle”,
informou.
Outra questão apontada por Schottz é que há
também uma tradição longa no Brasil de compra centralizada através de
licitação, o que acaba favorecendo as grandes empresas. Daí a
importância da chamada pública, que possibilita a compra da agricultura
familiar. Mas ainda há dificuldade de entender essa diferenciação, pois a
lógica dos editais passa a ter uma seleção que não vai ao encontro do
menor preço, como de costume. O modelo do PAA, com um preço de
referência tabelado, faz com que os alimentos que chegarão às escolas
sejam definidos pela questão da segurança alimentar e do desenvolvimento
local, por exemplo, pautados pela agroecologia. Assim evita disparates
como a compra do pescado, que é típico do Rio de Janeiro, importado da
Argentina para a alimentação escolar carioca. E a licitação dá margem à
monocultura, pois fortalece a lógica da produção em grande escala.
Experiências do Pnae
Paulo
Lourenço tem 58 anos e é agricultor em Espera Feliz, na zona da mata de
Minas Gerais. Trabalha com o Pnae há três anos, foi um dos primeiros
camponeses a entregar através da Cooperativa da Agricultura Familiar
Solidária de Espera Feliz (Coopfeliz). Ele planta banana, alface, couve,
brócolis, mandioca e faz polpa de fruta, dentre outros alimentos. Leva
tudo para a cooperativa, que exige alimentos agroecológicos para de sua
sede distribuir às escolas. Consegue em torno de R$ 1.000,00 por mês com
essa venda. Paulo diz que nunca teve problema com os cadastros ou
qualquer papelada por conta da cooperativa, mas tem críticas e sugestões
para o governo.
“Ajuda
muito o agricultor, porque de outra maneira não vendia. O problema é
que a gente só recebe 30 dias depois, porque até a Cooperativa não tem
dinheiro para pagar. E tem vez que até passa um pouco mais. Levamos para
a cooperativa, que repassa para as escolas, mas a entrega seria maior
se tivesse um carro para buscar na roça. Muita gente tem dificuldade com
isso. O governo poderia também ajudar mais com as sementes e o
maquinário, além de ampliar os projetos para as hortas”, observou.
No
Mato Grosso já ocorreram alguns entraves no acesso dos agricultores,
pois saíram chamadas com produtos que não eram produzidos na região. De
acordo com Fátima Aparecida, da ONG Fase, que assessora os grupos
agroecológicos na região, por isso é importante um processo pedagógico
junto aos agricultores e o diálogo com o governo. Ela explica aos
camponeses o que é uma chamada pública, e faz contatos com as
secretarias e a nutricionista para conhecer os cardápios da prefeitura e
começar o diálogo das organizações com os gestores públicos.
“Para
que eles entendam que às vezes é preciso mudar o cardápio, adequar para
que os agricultores digam o que estão produzindo naquela época. Às
vezes os agricultores não têm os produtos que eles querem. Ajudamos a
elaborar o projeto, para participar no dia do encontro que define quem
vai entregar e os preços. Tem muita dificuldade para transportar, mas
com o PAA eles começaram uma parceria com a prefeitura. Outros até
cotizaram para comprar um veículo para levar os produtos do PAA e Pnae”,
relatou Aparecida.
O
FNDE reconhece que a logística é uma das maiores dificuldades relatadas
pelas entidades executoras e pelos agricultores familiares na compra e
venda de alimentos para o PNAE, por isso estão trabalhando na elaboração
de uma Ata de Registro de Preços Nacional para facilitar o processo de
aquisição de veículos frigoríficos. “O procedimento visa garantir o
melhor preço e agilidade no processo de compra. Além disso, o MDA tem
trabalhado na instalação de Unidades de Apoio À Distribuição de
Alimentos da Agricultura Familiar – equipamentos para auxiliar o
desenvolvimento de atividades de distribuição dos produtos da
agricultura familiar para o Pnae e para o PAA e também apoiar a
comercialização direta dos mercados locais e regionais”, afirmou a
assessoria do FNDE.
Os
grupos assessorados por Aparecida no Mato Grosso são formais e
comercializam acima de R$ 100 mil por ano, sendo que as documentações
são as mesmas do PAA. Mas em municípios menores, onde grupos informais
acessam, há problemas com a aquisição da DAP, principalmente com a DAP
jurídica. No caso, o sindicato dos trabalhadores rurais acaba
contribuindo como parceiro para o acesso a esses documentos. Em relação
ao aumento do preço da compra para R$ 20 mil por ano, afirma que os
agricultores ficam mais animados a participar só que tem município onde
apenas 5 famílias já atingem os 30% obrigatórios.
“Você
acaba excluindo o agricultor. Se você pegar o caso de Cuiabá e Várzea
Grande, onde está o maior número de alunos, esses R$ 20 mil é pouco. Mas
ainda é melhor, porque eles têm que pagar o transporte. Alguns
agricultores entregam direto nas escolas, outros têm uma central de
distribuição. As estradas em péssimas condições aumentam o custo dos
alimentos. A grande reclamação das escolas é ir ao local pegar os
alimentos, porque estão acostumadas com os supermercados que entregam
pelo telefonema”, concluiu.
A
ampliação do limite representa uma conquista importante para os
agricultores familiares e se soma aos vários instrumentos voltados para a
melhoria da comercialização dos produtos da agricultura familiar e o
fortalecimento dos produtores,
informou a SAF. “Com o aumento, o agricultor pode vender mais do que o
dobro do que podia vender antes para o Pnae, o que lhe permite investir
em melhorias. O Pnae é mais um mercado criado para fortalecer a
agricultura familiar e que o agricultor pode vender também para o PAA, o
que não o impede de aumentar a renda fornecendo ao mercado privado”,
afirmou.
Muitas
escolas ainda não têm infraestrutura adequada para o preparo de
alimentos, e estudos mostram que algumas sequer possuem água. Segundo
dados do censo escolar 2007, das quase 200 mil escolas públicas de
educação básica existentes no Brasil, 1.789 não possuem qualquer tipo de
abastecimento de água. No que se refere ao saneamento básico, quase 15
mil delas não possuem infraestrutura adequada. São questões que não
podem ser vistas como bloqueios para tornar o programa inoperante.
Alguns analistas dizem que são necessárias parcerias entre
prefeituras, governos estadual e federal para viabilizar melhores
condições de transporte e logística de armazenamento desses alimentos. É
muito importante para incorporar alimentos que vêm da agroecologia, sem
agrotóxicos, num país que tem o triste recorde mundial de maior
consumidor de venenos agrícolas.
Mesmo
com todas as dificuldades, o Pnae mostra como os agricultores e
agricultoras familiares brasileiros têm uma grande capacidade de
responder aos estímulos de políticas públicas minimamente adaptadas às
suas realidades. A evolução do programa certamente vai encher de orgulho
milhares de famílias agricultoras que agora terão a oportunidade de
fornecer comida boa para estudantes da rede pública, contribuindo para a
promoção da segurança alimentar e nutricional por esse Brasil afora.
Camponesas do MCP fazem entrega de alimentos pelo Pnae em Catalão (GO)
(foto: Marcelo Nascimento)